Nos últimos 16 anos, Angela Merkel foi o rosto à frente da estabilidade da Alemanha. Chanceler do país desde 2005 e membro do partido de centro-direita União Democrata-Cristã (CDU), ela se manteve no poder durante um período em que outras potências europeias tiveram quatro, cinco e até sete chefes de Governo. Mas as eleições que ocorrem neste domingo (26) marcarão o fim do seu ciclo como principal líder da nação.

Embora não houvesse impedimento legal, Merkel anunciou em 2018 sua decisão de não concorrer novamente ao posto. Sua sucessão agora depende de dois fatores: a votação de cada partido e como serão os arranjos no Parlamento para se formar uma nova maioria. Armin Laschet, atual líder do CDU, está na disputa como um dos dois favoritos. Mas as pesquisas têm apontado ligeira vantagem para o atual ministro das Finanças, Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata (SPD), legenda que compõe a coalizão em torno de Merkel. O último debate na televisão antes das eleições no país ocorreu na quinta-feira (23).

Segundo o cientista político Mauricio Santoro, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), essa é a eleição mais disputada da história moderna da Alemanha. “A votação será muito fragmentada. Então, o partido que vencer vai precisar fazer alianças com pelo menos outros dois partidos. Temos um voto que ficou mais volátil. É possível que o CDU, partido da Merkel, tenha sua menor votação em muitos anos. Ele costumava ter cerca de 40% dos votos. Mesmo que ganhe, pode ser que não chegue a 25%”, disse.

Embora nascida em Hamburgo, na Alemanha Ocidental, Merkel mudou-se com a família para a Alemanha Oriental ainda criança. Formou-se em física e trabalhou com pesquisas científicas de química quântica até 1989, ano em que o muro de Berlim foi derrubado. Sua carreira política foi impulsionada nesse contexto. Ela foi por um curto período porta-voz do primeiro governo democraticamente eleito na Alemanha Oriental, liderado por Lothar de Maizière em 1990. 

Com a reunificação alemã, Merkel foi eleita já no final de 1990 para o parlamento alemão e tem sido reeleita desde então. Foi por meio de uma grande coalizão que ela se tornou a primeira mulher a assumir o posto de chanceler da Alemanha em 2005. De lá pra cá, seu mandato foi renovado quatro vezes. Nesse período, ela lidou com diversas crises, como a desvalorização do Euro em 2011; a onda migratória que alcançou a Europa em 2015; o Brexit, que marcou a saída do Reino Unido da União Europeia e, mais recentemente, a pandemia da covid-19.

Para o professor Santoro, seu principal legado é manter a tradição alemã de centrismo, equilíbrio e moderação em um período atravessado por crises. “Merkel levou o partido conservador bem pro centro. Incorporou demandas dos sociais-democratas em questões trabalhistas e demandas dos verdes na agenda ambiental. Também por isso ficou tanto tempo no governo, porque foi capaz de oferecer algo a diferentes setores da população alemã”.

Símbolo

Na visão de Ricardo Ghizzi, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Merkel se tornou um símbolo de estabilidade porque soube fazer uma boa síntese dos anseios da população. “O trauma da Segunda Guerra Mundial ainda está muito vivo na sociedade alemã. Embora muitos que viveram aquele período já tenham morrido, os filhos guardam essa memória. Muitos perderam seus pais. E a Merkel representou o desejo da sociedade alemã por tranquilidade, por paz, por estabilidade”.

Ghizzi pontua que, após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade alemã desenvolveu uma aversão aos radicalismos. “Também não tinha outra opção. Os alemães se afastaram de todo tipo de radicalismo político e religioso e passaram a representar a estabilidade. Nos últimos anos, a Alemanha representou na Europa e no mundo um bastião da democracia, dos direitos humanos, do acolhimento aos refugiados, da defesa do meio ambiente, da ponderação”, acrescentou.

A Alemanha é uma das principais protagonistas das articulações da agenda ambiental no mundo e é o único país desenvolvido que abriga mais de um milhão de refugiados. A política humanitária de concessão de asilo adotada durante a onda migratória de 2015 impulsionada principalmente pela guerra na Síria trouxe dificuldades para Merkel, que sofreu críticas de setores conservadores da população e de seu próprio partido. Outro momento que gerou debate interno e externo foi a decisão de não enviar soldados para a intervenção militar na Líbia em 2011, embora ela tenha mantido a participação na ocupação do Afeganistão, iniciada antes de seu governo e encerrada no mês passado após quase 20 anos.

Em reação às posições progressistas no campo dos direitos humanos, também houve um crescimento da legenda de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que se apoia no discurso anti-imigração e que deverá ser uma das cinco principais forças nesta eleição. Outra dificuldade enfrentada por Merkel envolve atritos relevantes com outros países sobre questões econômicas, os quais giraram em torno da implantação de ajustes fiscais rigorosos e contenção de gastos públicos como pré-requisitos para se obter apoio da União Europeia em épocas de crises.

Apesar das divergências internas e externas, Santoro avalia que a capacidade de diálogo e de composição permitiu que Merkel atravessasse os momentos mais difíceis de seu governo. Em 2012, seu índice de aprovação chegou ao máximo histórico de 77%. No ano passado, voltou a pontuar alto: em meio à gestão da pandemia da covid-19, sua popularidade alcançou 74%. Apoiando-se em sua própria formação científica, ela adotou medidas afinadas com orientações da comunidade de pesquisadores. “Na comparação com os Estados Unidos, por exemplo, onde a pandemia foi uma catástrofe humanitária, a Alemanha adota uma posição mais moderada, mais estável”, observa Santoro.

Para Ricardo Ghizzi, o comportamento da população também contribuiu para que o controle da crise sanitária gerasse resultados mais satisfatórios do que nos países vizinhos. “Eles estão muito vinculados às normas e regras. Há um índice maior de obediência. Se é pra ficar em casa, eles ficam”.

Futuro

Qualquer um dos dois favoritos que vencerem a disputa será visto como representante de uma continuidade do governo Merkel. A diferença, segundo Santoro, é que os sociais-democratas poderiam fazer algumas mudanças pontuais no perfil do governo, como na relação com a China. O cientista político aponta esse como um tema sensível do debate político. “Há uma discussão se a Alemanha deveria ser um pouco mais dura, levando em conta a questão dos direitos humanos e das relações sociais”.

Segundo ele, o futuro governo enfrentará novos desafios, pois o cenário europeu pós-Brexit e pós-pandemia está longe de ser estável. A liderança alemã será, portanto, exercida em um contexto mais complexo. Ainda assim, Santoro não vê o país perdendo protagonismo com o fim da era Merkel.

“Não há outro país europeu com a mesma capacidade de influência da Alemanha no continente, seja pelo seu peso econômico, como pelo seu peso populacional. Isso será mantido, ainda que suas posições nem sempre sejam consensuais na União Europeu e já tenham passado por muitos questionamentos. A Alemanha tem uma visão das finanças públicas bastante conservadora, muito preocupada com a inflação por razões históricas. E nem sempre isso é algo que outros países estão de acordo”, pondera.

Para Ricardo Ghizzi, com o Reino Unido fora da União Europeia e mais focado em suas relações com os Estados Unidos, a liderança alemã fica ainda mais consolidada pelo seu peso econômico e comercial. “A Alemanha possui uma posição geográfica privilegiada e central na Europa, tendo fronteira com nove países. E além de ser a maior economia da União Europeia, tem relações próximas com a Rússia. Então acaba funcionando também como um ponto de amortecimento das tensões entre a Rússia e os países ocidentais”.

Fonte: Agência Brasil