O ano de 1994 ficou marcado na história da geopolítica do continente africano, que testemunhou um dos maiores massacres do século XX: o genocídio contra a etnia dos Tutsis em Ruanda. Quase 1 milhão de pessoas foram mortas em um período de apenas cem dias. A tragédia, que completa 31 anos, foi lembrada em solenidade no plenário da CLDF nesta segunda-feira (7) em evento que reuniu embaixadores de países africanos, pesquisadores, autoridades do Itamaraty e sobreviventes do massacre.
A deputada Doutora Jane (MDB), autora da iniciativa, ponderou que o ato de revisitar o evento histórico é essencial para que se impeça futuras tragédias como a que ocorreu em Ruanda.
“Hoje, esta Casa se reveste de um silêncio respeitoso. Devemos ter o compromisso de jamais esquecer. A história de Ruanda é uma prova de que, mesmo após a dor intensa, a reconstrução é possível”, opinou a distrital.
Violência orquestrada
A cerimônia teve a participação do jornalista e ativista Daddy Maximo Maicira-mitali, sobrevivente do genocídio, que fez um relato dramático sobre os meses de horror vividos por ele e sua família durante o massacre. Ele contou que dezenas de membros de sua família foram assassinados e que ele próprio, uma criança de 12 anos à época, sofreu abusos e mutilações praticados por extremistas do grupo étnico Hutu.
O ativista explicou que o massacre não foi um caso isolado, mas parte de um processo contínuo de intensa campanha de “demonização” da etnia Tutsi, iniciada na década de 1960, quando a maioria hutu assumiu o poder, aboliu a monarquia tutsi e proclamou a República de Ruanda.
“A matança dos Tutsi foi massiva e feita de forma orquestrada, através de propaganda e doutrinação de forma muito sistemática. Houve tentativas em diversos outros anos da exterminação dos Tutsi. Os sobreviventes têm cicatrizes mentais e físicas que talvez nunca iremos curar”, declarou.
A reconstrução e pacificação do país, em sua avaliação, é fruto de uma mentalidade que optou pelo perdão e união das etnias ao invés de vingança e retaliação. A preservação da memória, para Daddy Maximo, é essencial para rebater narrativas atuais que tentam distorcer os eventos e descredibilizar o sofrimento dos Tutsis.
“Esta celebração é um tributo à memória das vítimas do genocídio. Hoje, os sobreviventes não estão sozinhos nesta luta. Temos o suporte do governo e dos amigos de Ruanda. Mas temos de permanecer alerta, pois muitos insistem em negar o genocídio”, lamentou.
Por que se lembrar?
O estudioso Tom Ndahiro, autor do livro “Friends of evil: When NGOs support genocidiaires” (Amigos do mal: Quando as ONGs apoiam os genocidas, em tradução literal), relata que a memória coletiva pode ser condicionada por narrativas políticas e ideológicas e que, por isso, é preciso que a história do massacre seja sempre lembrada e revisitada para que não haja distorção. “Lembrar não é simplesmente um ato de história, mas um ato de resistência”, opinou.
Ele também avalia que a violência praticada em 1994 foi “sancionada pelo Estado” por um processo histórico de indução ao ódio aos Tutsis. “O genocídio não aconteceu em abril de 1994, teve início décadas antes, com o ódio espalhado nos discursos e as leis discriminatórias culminaram no massacre sistemático. O Estado não nos ofereceu nenhuma proteção”, declarou.

O cientista político e pós-doutor pela Universidade da Flórida Zachary D. Kaufman explicou que, durante os cem dias do massacre, a taxa de assassinatos ocorreu em velocidade superior em cinco vezes a do holocausto contra os judeus. Ele estabeleceu uma lista com dez aprendizados que devem ser extraídos do conflito:
1. O discurso de ódio é perigoso;
2. A prevenção de atrocidades é possível;
3. A justiça de transição é essencial;
4. Em genocídios, o abuso sexual é generalizado;
5. A representação das mulheres é crucial;
6. A educação sobre genocídio é necessária;
7. A vontade política é vital;
8. Apoiar os sobreviventes é fundamental;
9. O protagonismo contra injustiças é imperativo;
10. O “Nunca mais” ainda não foi cumprido – no sentido de que houve a “promessa” de que o genocídio não voltaria a ocorrer.
Para o embaixador Antônio Augusto Martins César, dirigente Departamento de África no Ministério das Relações Exteriores (MRE), fatores como o aumento da desigualdade e da pobreza contribuem para tragédias como a que ocorreu em Ruanda. Ele avalia que a capacidade de lidar com divergência de opiniões deve ser cada vez mais estimulada, em especial em ambientes como as redes sociais. “Ruanda nos mostra que o caminho do progresso passa pela capacidade de conciliação e de seguir na construção de um país mais justo”, destacou.
Já o embaixador de Ruanda, Lawrence Manzi, explicou que a divisão dos cidadãos por etnias é uma herança do período colonial. Para ele, esse processo foi fundamental para o surgimento de diversas guerras e massacres no continente ao longo dos últimos séculos. O diplomata afirmou que eventos como a solenidade desta segunda-feira ajudam a manter viva a memória sobre a tragédia.
“O genocídio conta os Tutsi nunca deve ser distorcido ou ser considerado uma coisa trivial apenas para se encaixar numa narrativa política contemporânea”, avaliou.
O embaixador de Cameroun (antiga República de Camarões) destaca que o Kwibuka – nome dado à solenidade e que significa “recordar” – vai além de uma mera lembrança, mas uma reparação histórica. “Optamos pela paz, justiça, reconciliação e dignidade humana. Devemos Inspirar a vigilância contra qualquer ideologia que busca dividir e desumanizar os povos africanos”, declarou.

O massacre
O genocídio contra o povo Tutsi, em Ruanda, ocorrido entre abril e julho de 1994, foi um dos episódios mais brutais da história recente. Em apenas 100 dias, quase 1 milhão de pessoas (opositoras ao regime extremista) foram assassinadas, a maioria da etnia Tutsi.
A violência foi impulsionada por décadas de tensões étnicas entre os Hutus, maioria no país, e os Tutsis, minoria que historicamente ocupava posições de poder. O estopim do massacre foi o assassinato do presidente ruandês Juvénal Habyarimana, quando seu avião foi derrubado em 6 de abril de 1994.
A partir desse momento, milícias Hutus conhecidas como Interahamwe, com apoio do governo, iniciaram ataques sistemáticos contra os Tutsis e opositores. Civis foram convocados a participar dos massacres, usando facões, porretes e armas improvisadas.
O genocídio foi amplamente planejado, com listas de pessoas a serem mortas, postos de controle para identificação étnica e propaganda de ódio disseminada por rádios e jornais. A comunidade internacional, apesar de alertas e apelos, foi amplamente criticada por sua inação e lentidão em intervir para conter a violência.
Após o genocídio, o país passou por um processo doloroso de reconstrução, com julgamentos de criminosos de guerra e esforços de reconciliação nacional. O novo governo, liderado por Paul Kagame e a Frente Patriótica Ruandesa (FPR), priorizou a unidade nacional, abolindo referências étnicas oficiais e promovendo justiça por meio de tribunais locais chamados Gacaca.
A memória do genocídio é mantida viva por meio do Kwibuka, um período anual de luto e reflexão, com o objetivo de educar sobre os perigos do ódio e garantir que tragédias como essa nunca mais se repitam.
Fonte: Agência CLDF